ARTIGO

Sementes
e saberes
na aldeia Ripá

Texto e fotos por Andressa Santos Domingues

Sementes e saberes na aldeia Ripá

“A planta [os alimentos] de agropecuária, do agronegócio não é bom pra nossa saúde! O nosso é roça tradicional. Esse é importante. Esse negócio é muito sério. Por isso nós estamos muito agradecidos por vocês, que estão vindo aqui, de muito longe, pra gente se escutar. Nós estamos convidando pra gente recuperar [o território]. Vamos dar uma força, mão com mão, em cada conversa. Pra mim, eu sozinho, eu não aguento. Pra vocês que vem de longe daqui, vamos fazer uma reunião pra recuperar [o território].” (Sumené, Cacique Xavante da Aldeia Santa Cruz/Ripá).

A fala do Cacique Sumené abriu a Segunda Feira de Sementes e Saberes, organizada de forma autônoma pela Associação Indígena Ripá de Entodesenvolvimento (AIRE), no Território Indígena (T.I.) Xavante de Pimentel Barbosa, com a participação de três etnias convidadas: Xerente (T.O.), Kanela (M.A.) e Krahô (T.O).

Entre os dias 19 e 21 de outubro de 2019, os indígenas A’uwē Xavante também recepcionaram instituições parceiras como a Associação Rede de Sementes do Xingu (ARSX), a Funai, o Instituto Flor de Ibez e representantes do MPMT de Barra do Garças/ MT, na aldeia Santa Cruz/Ripá, criando assim um espaço de diálogo e partilha sobre territorialidade, saúde do território e economia sustentável.

Durante o evento, os A’uwē Xavante puderam relembrar e compartilhar as transformações crescentes da aldeia Santa Cruz/Ripá no que concerne à gestão territorial, à organização autônoma da comunidade e aspectos essenciais para a melhoria e soberania do território e da alimentação.

Um dos aspectos a se mencionar é como os A’uwē Xavante vêm buscando integrar o modo de vida atual e o calendário tradicional. Nesse ponto, a coleta de sementes do Cerrado, feita principalmente pelas mulheres, tem papel fundamental na multiplicação e armazenamento das espécies da região, que se soma ao armazenamento de sementes tradicionais de roça, como o milho – nozâ – e o feijão – uhi.

Enquanto a roça procura suprir parte da demanda alimentar da Ripá, a coleta das sementes florestais enriquece a alimentação e contribui com a economia local, possibilitando a ampliação de projetos na comunidade ao serem comercializadas, especialmente junto à ARSX, presente na aldeia desde 2013.

A união e a autonomia dos povos foram reforçadas pelas falas das três lideranças convidadas – Xerente, Kanela e Krahô –, que também teceram um breve panorama de ações que ocorrem em seus territórios. A apresentação de danças e cantos tradicionais permeou e enriqueceu os diferentes momentos da Feira, vibrando o espaço de reuniões com o ecoar das vozes.

Na manhã do dia 19 de outubro, uma expedição de coleta e reconhecimento de sementes, o Dzomori, foi guiada pelas mulheres A’uwē. À tarde, as A’uwē facilitaram uma oficina de cestaria de palha de buriti, enquanto o ancião Waraci guiava uma oficina de confecção de flechas tradicionais. Ao final do dia todos convidados puderam participar do Warã 1, quando, entre outras coisas, o Cacique Sumené reforçou a importância de cada um para a realização do evento.

No domingo (20) logo cedo os A’uwē Xavante iniciaram a preparação das toras de buriti para a corrida entre os homens, o Ui’wede, torneio tradicional também presente na cultura Krahô. Os homens das etnias Kanela, Krahô, Xerente e Xavante participaram da competição em equipes, enquanto um caminhão e duas caminhonetes lotadas de pessoas acompanhavam os corredores que percorreram cerca de 2 km com as toras em seus ombros.

Na parte da tarde, uma interação mais direta entre as instituições ocorreu por meio das falas de Alexandre Lemos, indigenista e membro da AIRE, João Carlos Pereira representante da ARSX e do professor Magno Silvestri, da área de Geografia da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Tratou-se do funcionamento da ARSX nas aldeias, perspectivas e desafios na coleta de sementes e outros temas relacionados às áreas de ocupação Xavante, território e saúde, enriquecidos pelo trabalho do professor da UFMT sobre territorialidade Xavante no leste do Mato Grosso. Logo após, o canto Krahô ao som do maracá deu início à Troca de Sementes.

Diversas espécies como caju, mangaba, baru, copaíba, açaí, urucum, ingá, milhos, feijões e manivas de mandioca foram postas às mesas para trocas. Artesanatos como colares, pulseiras e brincos feitos de tiririca, capim dourado e miçangas e as cestarias Xavante, Xerente, Krahô e Kanela completaram o quadro de exposições da Feira, dando mais cor ao evento.

Além das rodas de conversa e atividades culturais que permearam toda a programação, integrando indígenas e não-indígenas, um bolo tradicional de milho, tsadaré, feito pela A’uwē Madalena, introduziu os participantes na culinária Xavante. Logo após, duas partidas de futebol simultâneas – uma com o time dos homens e outra com o das mulheres – descontraíram com alegria o encerramento das atividades da tarde.

À noite o tempo fechou e uma tempestade de areia dispersou parte do pessoal, mas no centro da aldeia formou-se um grande círculo de mãos entrelaçadas para entoar os cantos tradicionais A’uwẽ e preparar o grupo para a noite de sonhos, tão valorizados por essa etnia.

Na manhã de segunda (21), as palavras das mulheres foram escutadas por todos. Diálogos entre as coletoras de sementes e lideranças, como a Cacica Elisabete do povo Xerente, deram fechamento ao segundo encontro da Feira de Sementes e Saberes da AIRE.

Além do evento ter sido construído a partir da demanda da própria comunidade, o preparo das refeições ficou a cargo de dois A’uwē Xavante voluntários, que agregaram a opção vegetariana ao cardápio da Feira. Já as traduções das falas foram feitas pelo A’uwē Abeldo, membro da AIRE. Assim, a Segunda Feira de Sementes e Saberes uniu a autogestão territorial ao fortalecimento de alianças entre povos e parceiros. Foi também um momento de prestigiar e aprender, uns com os outros, a sabedoria dos Povos Tradicionais.

Iniciativas como essa da AIRE possibilitam intercâmbios de práticas e saberes, e fortalecem formas mais eficazes de manejo sustentável da fauna, flora e água dos territórios indígenas. Nesse particular, a participação em cursos, oficinas e vivências de formação em agrofloresta oferecidos pelo Instituto Flor de Ibez 2 têm sido fundamental. A AIRE é uma associação que envolve território, soberania alimentar e espiritualidade, e a Feira de Sementes e Saberes foi uma resposta desse envolvimento, impulsionando novos movimentos.

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1. Warã é uma reunião da tradição A’uwē que ocorre todos os dias, entre os homens, ao alvorecer e ao anoitecer, quando sonhos são compartilhados e decisões em grupo são tomadas.

2. Flor de Ibez – Instituto de Vida Integral, localizado no município de Barra do Garças-MT, promove a formação em agroecologia, permacultura e outras práticas sustentáveis e a troca de saberes junto aos povos indígenas da região Araguaia-Xingu, especialmente A’uwẽ Xavante. Trabalha em parceria com a aldeia Santa Cruz/Ripá (T.I. Pimentel Barbosa) desde 2016. Mais informações, clique aqui

Alguns momentos do encontro. Bom desfrute!

Canto Xavante na Aldeia Ripá, durante a Segunda Feira de Sementes e Saberes

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Canto Kanela na Aldeia Ripá, durante a Segunda Feira de Sementes e Saberes

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Canto Krahô na Aldeia Ripá, durante a Segunda Feira de Sementes e Saberes

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Canto Xerente na Aldeia Ripá, durante a Segunda Feira de Sementes e Saberes

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Paz a todos os seres!

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